Anti-negritude
de gênero e o projeto brasileiro impossível: Estudo crítico dos negros
brasileiros emergentes.
Universidade do Texas em Austin, EUA
Traduzido por: Wilson Oliveira Badaró
Resumo
Uma nova geração de negros erudito-ativistas
brasileiros está fazendo perguntas críticas sobre a natureza e o processo da
política. Não mais restrita á dominação branca brasileira ou aos cânones e
rituais acadêmicos eurocêntricos, essas vozes negras, enraizadas nos esforços
coletivos voltados contra as onipresentes e persistentes práticas
discriminatórias contra o gênero negro, desafiam a maquinaria cognitiva e
política do mundo social. Sônia Santos, Jaime Alves, Luciane Rocha, e
Maria Andrea Soares concentram-se em experiências negras que sempre revelam uma
estrutura de antagonismos contra os negros. Suas análises sugerem que o caráter
eminentemente corrupto do projeto social e ideológico brasileiro
dominante. Se o projeto pode ser reformado, ou se deve ser destruído e
substituído depende de como nós lemos e do quão longe estamos dispostos a levar
cada análise.
Palavras-chave
Diáspora negra, Brasil, Anti-negritude de gênero, Violência
Sônia Santos, Jaime Alves, Luciane Rocha, e Maria
Andrea Soares, os autores dos ensaios neste volume, fornecem percepções sugestivas
sobre as experiências de gênero de negros e negritude no Brasil. Os
escritos são convincentes por causa dos materiais etnográficos densos que eles
apresentam e analisam. Assim, a importância destes ensaios reside na
ladainha de proposições heurísticas, hipóteses, e projetos políticos e
estéticos que geram. Eles falam da vida dos negros e morte social como
fios misturados de geografias da diáspora. E eles adotam e elaboram a
partir das posições aparentemente difíceis, se não impossíveis, de negritude
gênero, revelando, assim, tanto cenários distópicos quanto cenários
cautelosamente esperançosos. Estes ensaios são tanto sobre a sujeição negra,
como são sobre objeção negra à sujeição (Moten, 2003).
Entre o não mais e o ainda não, preso neste momento incerto
ainda que potencialmente transformativo, esta nova geração de negros
erudito-ativistas brasileiros está fazendo perguntas críticas sobre a natureza
e o processo da política. Não mais restrita á dominação branca brasileira
ou aos cânones e rituais acadêmicos eurocêntricos, essas vozes negras,
enraizadas nos esforços coletivos voltados contra as onipresentes e
persistentes práticas discriminatórias contra o gênero negro, desafiam a
maquinaria cognitiva e política do mundo social. Em diálogo com, e/ou opondo-se
à instituições brasileiras e as premissas e práticas da sociedade civil,
Santos, Alves, Rocha e Soares concentram-se em experiências negras que sempre
revelam uma estrutura de antagonismos contra os negros. O mundo social
negro é um mundo em guerra.
Esta nova geração constrói a partir das idéias de
Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, entre muitos outros críticos brasileiros
negros. Embora esses autores emergentes se expressem em inglês e estejam
profundamente imersos em várias correntes feministas de negros, eles
desenvolvem um conjunto de estratégias analíticas que descentram as
perspectivas anglófonas dominantes sobre a diáspora negra e sobre os feminismos
negros. Baseando-se em material etnográfico reunido em e sobre as
dinâmicas sociais negras brasileiras, que incidem especificamente sobre a saúde
reprodutiva das mulheres negras, práticas de jovens negros que reclamam
espacialidade urbana, experiências de violência de mães negras, e representação
de negros e da negritude na cultura popular. No entanto, ao produzir um conjunto
articulado de prementes conhecimentos, os escritores apontam para componentes
relacionados com a fundação da política anti-negra. Embora nenhum dos
autores digam explicitamente, suas análises sugerem o caráter corrupto imanente
do projeto social e ideológico brasileiro dominante: a partir da perspectiva do
afro-descendente, o Brasil é uma fraude. Se o projeto pode ser reformado,
ou se deve ser destruído e substituído depende de como nós lemos e quão longe
estamos dispostos a assumir cada análise.
Uma das experiências que os autores brasileiros
negros neste volume têm em comum é a imersão e envolvimento ativo com as perspectivas
da diáspora negra dentro e fora do Estado-nação brasileiro. Em vários
graus identificados com a (bastante ostensivamente) auto-proclamada Escola de
Estudos da Diáspora Negra de Austin (Gordon, 2006), Santos, Alves, Rocha e
Soares habitam e de bom grado teorizam desde uma perspectiva estrangeira do
ponto de vista, se eles se encontram no Brasil, nos Estados Unidos, ou em outro
lugar. Indivíduos negros produzem elevada dissonância social, em espaços
canônicos brancos da academia e da administração, incluindo eventos custeados
por iniciativas governamentais e não governamentais, universidades,
conferências e fóruns públicos bem
conceituados. As variações de gênero, cor e classe social
impactam no nível de dissonância. Ao nível da análise, a qualidade
dissonante de pontos de vista dos autores significa que suas obras ainda não
são aceitas como representações legítimas dos processos brasileiros e da
diáspora negra. No Brasil e nos Estados Unidos, embora esses autores estejam
sempre sob a suspeita que é lançada sobre qualquer intelectual negro, a
suspeita de que a experiência é agravado pela sua transnacionalidade. Tudo
isso é para dizer que, enquanto o 'não mais' for certamente palpável, o
"ainda não" sugere um cenário de integração e respeito que é, na
melhor das hipóteses, um tiro no escuro. As experiências profissionais dos
autores são elas próprios a evidência de uma estrutura diaspórica de
disposições contra os negros. Para tornar as coisas ainda mais complexas e
aguerridas, é bastante evidente que os não-negros não decretem tais disposições
exclusivamente contra os negros.
Santos, Alves, Rocha e Soares recusam-se a perguntar
ao absolutamente mal informado, vinculado com a má fé, e francamente pergunta irresponsável
sobre se a antinegritude de gênero é relevante. Em vez disso, os autores
desta edição especial, diretamente ou por implicação, consultam: como é que a
antinegritude de gênero se manifesta em práticas da sociedade civil e do
Estado? Esta importante questão leva a, investigação crítica fundamental: se
as polis brasileiras podem integrar
os negros? Especulando ao longo destas linhas, pode-se propor: se a polis não é capaz de integrar os negros
como de facto, cidadãos de pleno
direito e, em seguida, se a polis, do
ponto de vista negro, se são projeto e eventos impossíveis. Os chronos de integração – o tempo
decorrido, tempo imaginado, o tempo experienciado – é um chronos impossível. Sucede que o sujeito negro de gênero é um
tema impossível, aquele cujo gênero
impossível, negritude impossível, ser impossível, habita as
muito impossíveis coordenadas de tempo e espaço que compõem a nação
possível. A nação é possível porque o sujeito do gênero negro, enquanto
sujeito, enquanto cidadão, é um oximoro. Sempre já, assim
eterna, portanto, fora da linearidade do tempo, o sujeito negro impossível
ocupa as zonas de morte. Não é por acaso que, em Santos, Alves, Rocha, e
os escritos de Soares, a morte é um evento tão importante – sempre presente
como uma possibilidade, como experiência, como representação, como a repetição,
quase banal. Que nós, às vezes, tornamo-nos ainda enfurecidos pela morte
aparentemente desnecessária de uma pessoa negra – apesar de que seria um
exagero dizer que estamos surpresos – sugere que, de algum poderoso, embora nem
sempre em formas transparentes, negros esperam pela aceitação e
inclusão. Se as aceitação e inclusão são metas atingíveis e realistas
dependem de uma posição sobre antinegritude: é destrutível, ou pelo menos
controlável? E se sim, como? E quem pode e deve ser envolvido no
processo?
Para se envolver com essas questões temos de
atravessar camadas grossas e profundas de uma máquina cognitiva dominante que
sugere um cenário fundamentalmente divergente, estruturado em torno de um
conjunto de narrativas relacionadas e hegemônicas: a nação brasileira abrange
tudo; racismo anti-negro, quando e se existir, pode ser, será, e já está
diminuindo, e o atual boom econômico, gerido pelos competentes, incomumente populares
administradores de esquerda (presidentes Lula e Dilma Rousseff
paradigmaticamente simbolizando o momento) vai levantar todos os barcos,
incluindo aquele dos afro-descendentes. Tal aparato cognitivo expressa e
reafirma uma ontologia mítica que acolhe a negritude, aceita, procura, e já
incorpora a miscigenação e a harmonia social. O sobre-humano todo-amoroso,
cósmico, figura social confiante que encarna esta máquina ideológica é um cyborg. Este cyborg exige e decreta a eliminação mágica de negros – mágico
porque a eliminação é apresentado como seu exato oposto: amálgama tão
benevolente. Este cyborg, tão
sedutor quanto parece, precisa ser destruído, porque o seu desejo de mistura,
como Abdias do Nascimento diria, é uma tecnologia de massacre. O projeto
nacional otimista e sua ontologia atendente, eu ouço os autores neste volume
sugerindo, são enganosos na medida em que consistentemente produzem morte
social negra.
Nos ensaios que se seguem, as intersecções entre negritude
de gênero e geografias controvertidas são uma chave para o desafio analítico. O
reconhecimento de que esses cruzamentos estão no cerne de uma condição
diaspórica negra e seu processo – o da aguerrida presença negra em
Estados-nação das Américas – figura proeminente em cada uma das explorações dos
autores das restrições políticas e possibilidades relativas às cidades mundiais
brasileiras. Conforme análise de representações visuais da negritude indica,
falar da presença negra aguerrida é se envolver com o olhar branco
dominante. Um olhar que exige controle, distância, separação. Um
olhar que é ameaçado com a perspectiva de ser visto, o que significa a
perspectiva de ter seu ponto de vista desafiado, seus privilégios questionados,
sua pureza negada. Com base na análise da ontologia negra (1967: 110) de Frantz
Fanon, podemos supor que o corpo negro de gênero deve ser de gênero e negro em
relação ao olhar branco (ele mesmo sempre já de gênero e racial). O inverso,
porém, não é verdade. No caso do corpo negro como gênero masculino, Fanon
conclui que "[o] homem negro não tem resistência ontológica nos olhos do
homem branco". Em outras palavras, o olhar branco, e o ser de gênero branco,
não é dependente do olhar negro. Na verdade, o olhar branco e, portanto, o
ser branco, depende do pressuposto de que, ao mesmo tempo que vê, captura e coisifica
– 'Olhe, um negro[/negra]' – é protegido contra a negritude.
Os ensaios de Santos, Alves, Rocha e Soares engajam
um problema persistente que afeta a sociedade brasileira: qual é o lugar de
negros e negritude no imaginário nacionais, arenas políticas e paisagens
urbanas? Embora possa haver um lugar para a negritude nos reinos da
representação e da atuação (por exemplo, como ritual, como o consumo, como o
medo, como desejo, como oposto ontológico), às vezes celebrada, às vezes negada,
muitas vezes ambos, a pergunta sobre o lugar dos negros – como corpos,
comunidades e terra – é complexa, e porque nos convida a lutar com os
resultados reais das representações e práticas sociais, talvez mais urgentes.
A distinção entre a negritude e negros é, naturalmente,
uma estratégia analítica que tem pouca analogia com a experiência: seria um
desafio para identificar a manifestação de um sem o impacto do
outro. Ênfase na divisão, no entanto, permite um exame nacional de uma
contradição fundadora das relações sociais brasileiras e representações, ou
seja, a negação simultânea da relevância da raça em geral, e em particular da
negritude, e da hiperconsciência de raça, e negritude especificamente, como
parâmetros normativos dos quais o comportamento, representações, e os arranjos
institucionais desenham.
Análise Relacional da antinegritude de gênero
Numa perspectiva diaspórica negra, a gramática de
estruturas antinegritude, os mundos sociais e cognitivos em formas que permitem
paralelos, conexões e analogias entre fronteiras de tempo e geografia (Barlow,
2003; Harrison 2002; Robinson, 2000; Winant, 2001). No caso específico de
estudos críticos sobre as relações sociais brasileiras, Angela Gilliam (2001),
Michael Hanchard (2003), Sonia Santos (2008), Keisha-Khan Perry (2009), Jaime
Alves (2009), e Luciane Rocha (2010), entre outros, têm enfatizado suas
semelhanças vis-à-vis outras nações e
estados de império (Jung, 2011), ao invés do caráter sui generis da arquitetura social brasileira comumente assumida. Isto
não é para negar especificidades das relações sociais brasileiras, mas sim, é para
analisar essas características únicas no contexto de uma antinegritude
diaspórica primordial que estrutura mundos sociais, em particular, ainda
costumes relacionados. Um olhar sobre os indicadores econômicos e sociais
oficiais, nos Estados Unidos e no Brasil, é suficiente para concluir que,
inflexões locais, não obstante, em ambos os lugares oportunidades de vida nas
esferas do trabalho, habitação, justiça criminal e de saúde estão relacionados
à própria posicionalidade racial (Paixão, 2010; Telles, 2006; Winant, 2001), e
que o mais próximo é/está para a negritude, com variações de acordo com as
formas que o gênero se articula com a raça, maior o nível de
desvantagens. Maiores disparidades existem entre negros e não-negros, mais
do que dentro dos grupos raciais, um padrão indicativo de uma estrutura antinegra
diaspórica de antagonismo racial de gênero (Harrison 2002; Hartman, 1997, 2007;
Wilderson 2010). Explorando as implicações de uma perspectiva diaspórica
que centraliza a antinegritude, Jared Sexton (2010: 47) escreve:
Se a opressão dos povos não-negros de cor em, e
talvez além, os Estados Unidos parecem condicional para as instâncias
históricas e funções em um escopo empírico mais restrito, a antinegritude
parece invariante e ilimitada (o que não significa que o primeiro é de alguma
forma insignificante e de curta duração ou que o último é desgastante e
imutável). Se perseguido com alguma consistência, o tipo de análise
comparativa descrita acima, provavelmente afeta a formulação da estratégia
política e modifica o comportamento da nossa cultura política. Na verdade, pode
desnaturar o instinto comparativo, em favor de uma análise relacional mais
adequada para a tarefa.
Variações de uma estrutura de análise relacional
Santos, Alves, Rocha, e os ensaios de Soares. A análise relacional constrói
a partir de fatos da negritude de gênero transnacional e examina suas
manifestações locais. Destacando a negritude, esta perspectiva especifica
a supremacia branca, tornando-se um discurso histórico de poder que depende da
associação entre negritude, por um lado, e não humanidade, exclusão, aversão,
por outro. Ao refletir sobre a constituição e os efeitos das hierarquias
de gênero brancas supremacistas raciais, a negritude e os corpos negros ganham
relevância central – não total – como demarcação de zonas de morte a partir do
qual os grupos dominantes e subordinados são constituídos (Sexton, 2010:
48). O continuum da supremacia
branca de relativa pertença torna-se um continuum
que salienta a exclusão negra como a exclusão paradigmática. Um campo de
continuidades, mais do que rupturas, define a diáspora negra e seus
estados-nação.
Como os ensaios de Santos e Rocha mais incisivamente
observam, os aspectos de gênero da antinegritude constituem um fio significativo
de redes da diáspora. Hortense Spillers, por exemplo (2003: 214-15), adianta
que a dinâmica de gênero específica para os sobreviventes da chamada
"passagem do meio" estão necessariamente relacionadas, mas ainda não
redutíveis às normas de gênero dominantes que sobredetermina não-negros. O
argumento é o seguinte. A suspensão das distinções precedido de gênero, e
uma violência primordial imposta sobre corpos negros definidos, a presença
negra na diáspora. As normas de gênero constituem, assim, um campo pronto para
o combate que, por um lado, é muito influenciado por padrões de
respeitabilidade hegemônicos, e por outro oferece várias possibilidades que,
como eles questionam expectativas normalizadas de desempenho social de gênero,
estruturas de impacto de raça e gênero.
A leitura crítica da vida após a morte da escravidão
significa trazer as estruturas sociais do passado, e não como um reservatório
imutável mesmo, mas como um símbolo cuja energia se dissipa em formações
contemporâneas de raça e gênero. Levando em conta o passado no presente e,
assim, o presente como reanimação e modificação do passado, as seguintes
proposições heurísticas emergem dos ensaios. (Observe como eles se
envolvem e, assim, necessariamente modificam, deslocam, um diálogo diaspórico
que tende a ser anglófono e centrado em experiências de escritores negros e
comunidades nos estados de língua inglesa.) Em primeiro lugar, como Santos,
Alves, Rocha e Soares e sugerem, colocado fora simbologia do gênero da fêmea e do
macho normatizados, a fêmea negra e macho não habitam área social predeterminada
(Spillers, 2003: 228). Isto não é para negar o óbvio: corpos negros são
sobredeterminados, continuando a violência (Hartman, 1997: 86). Esta
violência expressa e reproduz uma infinidade de 'imagens de controle' (Collins,
1991). Para enfatizar as forças sociais que subjugam corpos de acordo com
a constante mudança, no entanto, restringindo, as normas de gênero devem reconhecer
as maneiras pelas quais as imagens que controlam a função de estereótipos que
são ambos impostos e resistiram. A 'Mãezinha', a 'mãe do bem-estar', e o
'homem negro criminoso' (Russell, 1998), por exemplo, geram expectativas sobre
a natureza de uma pessoa e o comportamento com base em sua raça assumida,
gênero e sexualidade. Ao mesmo tempo, se opor a tais expectativas é,
forçosamente, criar conjuntos
alternativos de suposições e conduta. E isso constitui a
segunda proposição heurística emergindo dos ensaios: tanto quanto os corpos
negros são submetidos a desumanização, eles também realizam contra-narrativas
que, embora nem sempre eficaz em negar as normas impostas, no entanto, sugerem
possibilidades além do material e limites simbólicos antinegritude de
gênero. Esses limites não são apenas sobre o próprio corpo e
comportamento, pois eles produzem limites espaciais e, portanto,
políticos. O que quer dizer, as possibilidades performativas anunciadas em
ensaios deste volume são mais sobre a sobrevivência psíquica quando eles estão
prestes a reconfiguração simbólica e experimentação política.
Brasil na diáspora, a diáspora no Brasil
Atualmente, muitos conglomerados urbanos no Brasil
podem ser analisados como terrenos de possibilidades em seu interior, embora, e
como um sintoma de processos esmagadores antinegros. Redes sociais negras
densas e complexas são justapostas à terra que tem sido, talvez, mais ainda,
nos últimos anos, um campo de batalha entre concorrentes projetos sociais (por
exemplo, Carril, 2006). Geografias negras históricas – evidência de um apartheid atual (Oliveira, 2007; Rolnik
1989) definido pela violência, a exclusão, bem como a presença desproporcional
de negros – tornou-se o foco principal da ocupação militar e policial sem
precedentes. Aniquilar as gangues de tráfico de drogas abrigadas nessas
áreas é o objetivo oficial.
O Brasil, de forma mais ampla, constitui um caso
interessante dado o atual contexto econômico marcado pelo controle da inflação,
aumento do salário mínimo, e as políticas públicas, como o Bolsa Família que
foram eficazes na transferência de renda para famílias carentes. Tendo em
conta que os negros – que no Brasil inclui pretos e pardos, de acordo com o
censo – são desproporcionalmente representados entre os pobres, não é de
admirar que eles foram os principais beneficiários de tais políticas
redistributivas. No entanto, um foco crítico sobre antinegritude de gênero
torna possível levantar questões sobre a viabilidade da presença negra no
Brasil, mesmo em um contexto de aparente elevação social do negro. Por
exemplo: em 2007, em 26 dos 27 estados brasileiros, a taxa de mortalidade por
homicídio de negros era maior do que a taxa para os homens brancos, e a
assimetria teve magnitude exponencial: no estado da Paraíba, por exemplo, foi
1.181,4 por cento superior; 806,9 por cento maior em Pernambuco. No estado
do Rio, essa taxa foi de 130,0 por cento maior para os negros do que para os
brancos (Paixão, 2010: 255, 256). Mais revelador, talvez, é o que é
chamado de "homicídio por intervenção legal", ou seja, os homicídios
cometidos por indivíduos que trabalham para o Estado, especialmente a
polícia. Não obstante os padrões de subnotificação documentadas em relação
a tais homicídios, entre 2001 e 2007, têm os negros representando 61,7 por
cento do seu total, a 64,5 por cento em 2007 (Paixão, 2010: 259). Os
negros estão sobre-representados nos índices de morte violenta, morte evitável
por doenças, acesso vetado à assistência
médica
e outros indicadores que sugerem padrões de longa data de exclusão (Paixão, 2010:
caps 2, 4). Uma hipótese que emerge das obras de Santos, Alves, Rocha e
Soares é que, ao passo que atualmente os negros experimentam ganhos econômicos
sem precedentes, eles também são desproporcionalmente vitimados pela negligência
do Estado (nas esferas da educação e saúde, por exemplo) e, mais incisivamente,
a violência. Enquanto a elevação econômica sugere um grau de assimilação
em um mercado consumidor em expansão, o Estado negligência e a violência indica
uma disposição estrutural antinegros de longa duração que põe em questão a
possibilidade de plena integração do negro e sua cidadania. Em debate é se, e
em que grau, a vida negra é viável na política brasileira.
Configurando o cenário mundial
Para contextualizar os problemas aos quais os
ensaios deste volume se endereçam, vamos nos focar brevemente sobre os recentes
acontecimentos do Rio de Janeiro. Alves é o único autor nesta coleção cuja
pesquisa não se baseia principalmente no Rio de Janeiro. No entanto, suas percepções
sobre lutas de São Paulo sobre o território sugerem uma cornucópia macabra de
semelhanças e continuidades.
Depois do infame massacre de 2007 no Complexo do
Alemão, uma classe trabalhadora, majoritariamente uma área de negros no
noroeste da cidade, quando 19 pessoas foram mortas em uma única operação
policial, a região metropolitana do Rio de Janeiro testemunhou uma onda sem
precedentes de violência, aparentemente atos coordenados de desafio contra o
Estado e a sociedade civil. A queima de ônibus, caminhões e automóveis de
passageiros; tiros em oficiais da polícia, incluindo a derrubada de um
helicóptero da polícia no Morro dos Macacos, em outubro de 2009 (22 pessoas
foram mortas nessa operação), e até mesmo explosões em áreas turísticas
(Salles, 2007) – todos marcaram a cidade como cenário nacional em que o Brasil
do projeto modernizador emergente é testado.
Em 2 de outubro de 2009, o Rio foi anunciado como o
anfitrião dos Jogos Olímpicos de 2016. Respondendo às preocupações de
segurança expressas durante o processo de seleção hospedeira da cidade, o
governador do estado do Rio, Sérgio Cabral, sinalizou sua determinação de
assegurar o controle social através da contratação de Rudolph Giuliani,
ex-prefeito de Nova York, como Conselheiro de Segurança dos
Jogos. Enquanto Giuliani teve muito de sua aprovação municipal e nacional
a partir de sua postura de tolerância zero contra o crime, é também sabido que,
entre a população negra da cidade, alguns administradores já ultrapassavam o
seu nível de desaprovação (Powell, 2007). A brutalidade do Departamento de
Polícia de Nova York empregou sobre membros de comunidades carentes, e
especialmente sobre o negro, foram notoriamente exemplificados no assassinato
de Amadou Diallo: em 1999, no Bronx, ele foi baleado 41 vezes por quatro
policiais à paisana. Mais cedo, em 1997, Abner Louima foi brutalizada e
sodomizada com uma alça quebrada do
êmbolo de um banheiro por policiais no
Brooklyn. Diallo era um imigrante da Guiné, e Louima é originalmente do Haiti,
sugerem ressonâncias diaspóricos profundas e amplas. Estas ressonâncias
reafirmam o lugar necessário que o Estado da nação brasileira ocupa nestas
teias de inflexões de gênero e de raça, impactando e impactado por lutas sobre
direitos para a cidade e, finalmente, a propriedade da terra.
Muitos dos fuzileiros navais brasileiros empregados
nas operações policiais no Rio e em outras cidades brasileiras são veteranos do
Haiti. O Brasil lidera o componente militar da Missão de Estabilização das
Nações Unidas no Haiti, em operação desde 2004. Missões militares não ao
contrário de quem trabalha no Rio já mataram dezenas de pessoas no Haiti em
várias ocasiões. Por exemplo, em 6 de Julho de 2005, pelo menos 26 pessoas
foram mortas em um atentado bem sucedido em Emmanuel "Dred" Wilmer,
também conhecido como Dread
Wilme, e quatro de seus seguidores mais próximos. Wilme era abertamente
hostil à ocupação militar da ONU de seu país e se opôs à derrubada do
presidente constitucional Jean-Bertrand Aristide (Delegação Estadunidense do
Trabalho e Direitos Humanos, 2005). A importância desses eventos diaspóricos
não pode ser exagerada, pois eles sugerem linhas de continuidade entre os
territórios separados pela distância geográfica, mas aproximaram-se devido à
utilização frequente de ocupação policial-militar e táticas de pacificação contra
os civis, os locais familiares de exclusão negra do Estado-nação, e a
super-representação quase esperada dos corpos negros como vítimas da violência
letal. Ao invés de comparações diaspóricas, então, o que as lutas violentas no
Rio sugerem é um conjunto profundo e contínuo, e reveladora das relações entre
as formas em que se manifesta a antinegritude de gênero em e através de
chamadas missões de pacificação. O Rio torna-se interessante, não porque
ele é único, mas porque oferece uma variação de um aparato repressivo que é
diaspórico em seu alcance e efeitos.
No Rio de Janeiro, essa sequência de cinco anos de
confrontos mortais frequentes oferece uma janela para um padrão histórico de
longa duração, que remonta a pelo menos o estabelecimento de assentamento
informal similar, na virada do século 20 (Moreira, 2006; Perlman,
2009). Os ensaios neste volume nos lembram que a negritude tem um papel
central na definição do escopo, letalidade e intensidade prolongada de tais
conflitos – conflitos que são tanto para a tomada do controle de territórios preparados para combate
ao
passo que eles estão prestes a defender em espaços da cidade do Rio de Janeiro
um projeto nacional modernizador que parece ter pouca, ou nenhuma, tolerância
para o controle autônomo da terra de negros e, em última instância, a ação
política autônoma, negra.
[1] Endereço
para correspondência:
João H. Costa Vargas, Departamento de Estudos da
Diáspora Africano e Africano da Universidade do Texas, Austin, TX 78712,
EUA. Email: costavargas@mail.utexas.edu.
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